20 DE NOVEMBRO – DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA: a história dos valentes
Vivíamos
felizes na África, com as nossas mulheres, filhos e irmãos. Lá, as florestas
eram densas, savanas riquíssimas em vida animal, litoral muito lindo, montanhas
enormes e vários lagos. Havia um comércio interessante entre os povos africanos.
Não queríamos sofrer interferência direta de nenhum povo asiático ou europeu,
por isso, éramos isolados.
A
nossa organização política e social era impecável: organizávamos da base para
cima, as estruturas políticas giravam em torno das instituições sagradas da família,
da onde ramificavam para o clã, a linhagem o grupo de descendência. Casávamos com
pessoas de outras linhagens, assim teríamos uma comum identidade cultural e
também nos uníamos para nos defender quando ameaçados por um grupo estrangeiro.
Críamos
inclusive num deus único, assim como o cristianismo, judaísmo, islamismo creem.
Cultuávamos forças da natureza, dando a elas personalidades humanas, como forma
de gratidão e reconhecimento.
A
paz reinava entre nós até a chegada dos europeus...
Antes
de falarmos do povo branco, faz-se necessário esclarecer que tínhamos escravos,
mas essa escravidão era diferente: os negros capturados eram levados para a tribo
vencedora e tinham que trabalhar e lutar pela tribo, todavia, tinham direitos,
inclusive de casar-se com um integrante de tribo. Não havia agressão sem merecer.
Seus direitos sociais eram preservados.
Voltemos
aos europeus...
Fomos
escravizados por eles, graças à traição de alguns irmãos. Firmaram um acordo
com o branco a fim de nos levar com eles.
Saímos
da costa africana rumo ao continente recém descoberto. O velho rendeu-se ao
novo.
Viajamos
de navio em péssimas condições, muitos dos nossos irmãos morriam vítimas de
doenças, de maus tratos e da fome.
Quando
chegamos ao Brasil, fomos separados. Tribos foram misturadas, havendo
desarmonia entre as diferentes linguagens e culturas. Isso foi feito propositalmente,
para que não houvesse comunicação entre as tribos.
Tornamo-nos
escravos, não tínhamos mais direitos, apenas deveres. Na África éramos livres;
no Brasil, fomos reduzidos a uma mera propriedade, podendo, assim, ser vendido,
doado, emprestado, alugado, hipotecado e até confiscado. Não possuíamos bens,
nem poderíamos ingressar no judiciário, mas, sim, infelizmente, podíamos ser
castigados e punidos.
Nesse
lugar (Brasil), os brancos eram a minoria, no entanto, era uma minoria que
dominava. A religião deles justificava a nossa escravidão. Os homens de pele
clara eram racistas e preconceituosos!
Trabalhávamos
nas plantações de cana-de-açúcar, de tabaco e de algodão, nos engenhos e,
depois, nas vilas e cidades, nas minas e nos criadouros de gado.
Dávamos
tanto lucro, que se o nosso senhor passasse por apuros, ele poderia nos vender
por um bom preço.
Nem
todos os escravos aceitavam esta condição de escravidão e opressão. Alguns dos
nossos irmãos eram resistentes, bravos pra valer, ao ponto de organizarem
fugas, resistências, revoltas. Quando conseguiam fugir iam para os chamados “quilombos”.
O quilombo era um lugar de refúgio, existiu e existem vários quilombos
espalhados pelo Brasil. Os quilombos criados pelos negros fujões eram um
pedacinho da nossa terra.
Na
fazenda acordávamos antes do nascer do sol; quando o sino tinia era a hora de
acordar. Depois de despertados, formávamos uma fila no terreiro para sermos contados
pelo feitor. O capitão rezava e a gente repetia.
O
nosso desjejum era um pouco de cachaça e uma xícara de café. Após isso, éramos levados
até a roça. Trabalhávamos até as oito, quando vinha o almoço. Às 14 horas vinha
o jantar e ao por do sol voltávamos à senzala, após passarmos novamente pela
revista do feitor.
Não
bastava o trabalho exaustivo, apanhávamos também. Após amarrados no pelourinho
recebíamos açoites; sentíamos o chicote entrar na carne traspassando a pele. A
cada chibatada era um grito seguido de gemido. A dor era grande. O suor
misturado com o sangue escorria pelo corpo. As veias inchavam. O negro valente
desfalecia. Apanhávamos em público, a vista de todos. Enquanto o escravo
chorava, o capitão do mato se deliciava com o açoite. A cena era horrível! Os outros
negros nada podiam fazer apenas assistir a mazela do irmão açoitado. A cada estalo
do chicote os escravos meninos pulavam, pareciam que estavam sentido a dor do
irmão, e, de fato, estavam, mas não era uma dor física, e, sim, de alma e
compaixão.
O
castigo não era feito somente no pelourinho: recebíamos pancadas na palma da
mão; o nosso corpo era anavalhado e depois recebíamos um banho de salmoura;
fomos por diversas vezes marcados por um ferro em brasa; éramos mutilados;
nossas mulheres eram estupradas; os homens eram castrados; levávamos marteladas
nos dentes e no sul do Brasil, os senhores atavam os punhos dos escravos e os
penduravam em uma trava horizontal, com a cabeça para baixo, completamente nus;
passavam nos negros uma mistura de mel e salmoura para que eles fossem picados
por insetos. Havia outros instrumentos e métodos de tortura, entretanto, é
melhor nem citá-los, pois as lágrimas já vertem dos meus olhos.
O
que era péssimo, terrível e assombroso começou a melhorar. No inicio do século
XIX já era possível verificar grandes transformações na Europa e nas colônias.
No continente europeu, a Revolução Industrial introduziu a máquina a vapor na
produção, mudando, assim, as relações de trabalho. Nas colônias, a vida urbana
foi valorizada graças à criação de estaleiros de fabricação de tecidos.
De
1850 a 13 de maio de 1888, começaram a tomar medidas mais efetivas para o fim
do regime de escravidão. A figura dos abolicionistas começou ficar notória.
Esses heróis lutavam a favor dos escravos: ajudavam na fuga; alguns compravam o
escravo e logo após davam-lhe a carta de alforria etc. Leis eficazes começaram
a surgir, findando o tráfico negreiro, trazendo liberdade ao filho
recém-nascido da escrava, os escravos acima de 60 anos foram libertos. No dia 13
de maior de 1888, a princesa Isabel, assinou a lei 3.353, popularmente
conhecida como Lei Áurea, libertando o nosso povo.
Fomos
libertos, porém, não houve uma política pública sequer para nos acolher.
Abandonados a sorte, perambulamos pelas vilas e cidades, pedindo de casa em
casa comida para matarmos a fome. Imigrantes vindos da Europa e do Japão
começaram a chegar ao Brasil, e nós, negros, que fomos à base da economia do
império e hoje país, ficamos de lado a deus dará.
Não
houve alternativa, começamos a furtar alimentos e tudo àquilo que fosse
necessário à nossa sobrevivência. Fomos presos e colocados atrás das grades. As
celas eram e são bem parecidas com as senzalas, com condições miseráveis e
desumanas. Até hoje as cadeias do Brasil têm cor e classe social.
Hoje,
além de uma consciência negra, precisamos de uma consciência humana. É inadmissível
aceitar a ideia de uma pessoa escravizar a outra, só porque acha que sua cor ou
classe social é melhor do que a pigmentação da pele e classe social do outro.
Somos
todos irmãos. Temos o mesmo pai e a mesma mãe. Temos a mesma origem e vamos
para o mesmo lugar.
O
Brasil foi o último país a abolir a escravidão, e só aboliu porque foi pressionado
internacionalmente.
Foram
358 anos de escravidão no Brasil. Mais de três séculos e meio de opressão
sangrenta. E no fim fomos deixados, como animais abandonados, pelos
ex-senhores.
O
Brasil tem uma dívida enorme e impagável com o meu povo. No entanto, o nosso
sofrimento não tem preço. Só tem valor se for em nome da liberdade.
Os
programas de cotas raciais, por exemplo, são uma forma de tentativa de quitação
da dívida contraída nesses 358 anos de opressão e inferiorização da minha
gente.
Fomos
escravizados e judiados, porém, sobrevivemos. Somos guerreiros, bravos e
valentes. Conseguimos sobreviver até aqui, e, com toda certeza, continuaremos
seguindo e questionando todos e quaisquer sistemas opressores.
(Pintura de A. Eckhout)
Luís José Braga Júnior, membro da Academia Guaçuana de Letras
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